quarta-feira, 17 de março de 2010

Corpo em (de)composição

Texto: Lilian Soarez

“Mudar o corpo, mudar o mundo, uma coisa não se faz sem a outra” (...).
Antonin Artaud


Ele me convoca, me tira do eixo, destrói minhas certezas, arrebata minha alma.
Entrar em contato com seu pensamento revolucionário aciona meus instintos mais primitivos, devoro suas palavras com voracidade, mastigo com gosto cada pedaço de frase, cada letra, cada vírgula. Sou como um bicho devorando sua presa. Minha fome vem do espírito e não tem fim, sou habitada por uma multidão que não cessa em pedir mais. Não há lugar para reservas, não existe digestão, apenas passagem; tudo o que é consumido é também destruído. Seria preciso costurar os buracos para reter a massa das emoções. Seria preciso acorrentar os sentimentos para que se pudesse cultivar a poesia.
Tento respirar, mas suas palavras me sufocam, não tenho como me proteger , sou atingida por um jorro de intensidades que entopem meus poros, o ar não chega aos pulmões, a asfixia me leva à morte; percebo-me finalmente viva.
Estou viva como uma serpente que se deixa encantar pelas vibrações da música. Enfeitiçada pelas vibrações do seu pensamento, sou permeada por angustias e desejos de liberdade. Sua música rouba minhas forças, e ao mesmo tempo me impulsiona a agir, mas meu corpo está em transe, quase que desfalecido, já não sou mais eu quem esta ali, mas um outro. Seu corpo é transparente e esburacado, não existe dentro ou fora, tudo está exposto. Posso ver suas vísceras, seus líquidos, seus medos, seus humores, seu sangue borbulhando. O ar que entra em seus pulmões é transformado em grito, sua fala não passa pelo entendimento racional, mas a sonoridade é concreta, sólida como um objeto capaz de abalar o espaço e atingir o espírito. Seu grito profundo contém uma intensidade anormal que cria ressonâncias capazes de manifestar toda a crueldade latente e toda força orgânica que o corpo consegue suportar ao produzir um duelo entre a carne e a alma. O embate espírito-matéria provoca ondulações rizomáticas em meu corpo, sacudindo-me da inércia e obrigando-me a entrar em contato com os estados mais profundos da minha existência, onde a peste revela sua face mais perversa e sombria.
Não tenho como fugir deste outro que esta em mim, é meu duplo. Eu sou duplo, mas ao mesmo tempo penso não sê-lo. Habitamos o mesmo corpo, respiramos o mesmo ar, somos nutridos pelas mesmas intensidades, mas seu corpo, que também é meu corpo, contém formas que só podem ser produzidas dentro de um universo de relações não substanciais, relações afetivas, perceptivas, imanentes. Temo entrar em contato com esses planos de imanência onde o corpo despovoado é composto por agenciamentos e ambigüidades, onde não se pode delimitar o espaço do eu ou do outro, estou sujeita as todas as afetações que ele me causa, e quando isso acontece, minhas energias se alteram e perco controle. É ele quem esta no comando agora.
Sua atuação rigorosa me tira da condição de morto-vivo, de sobrevivente. Já não sou mais apenas um corpo preocupado em seguir os modelos sociais, em viver a estética padronizada dos poderes, em sucumbir a todos os mecanismos que me impedem de lutar contra as forças enraizadas que me obrigam a viver como um refugiado num campo de concentração; deixo de ser um cadáver ambulante de olhar opaco, exausto e indiferente e passo a experimentar a vida através de uma nova percepção.
Minhas doses anestésicas foram suspensas, já não recebo mais os choques elétricos, a mordaça da boca foi retirada, libero o grito preso na garganta, mas não tenho como apagar as marcas das amarras deixadas no corpo. A pele está apodrecida, gangrenada, carrega em si todos os registros do corpo adestrado, que mesmo estando livre, não deixa de sentir as dores inquietantes provocadas por suas tortuosas lembranças.
O corpo que antes pertencia ao comedor de ópio, começa a se decompor, ao mesmo tempo que passa a ser habitado pelo outro eu, o eu duplo, o eu cruel, que me ensina as dúvidas, que me faz percorrer longos caminhos escuros, que cutuca minhas entranhas com ferro em brasa, que instiga meus desejos, que questiona as minhas verdades, que testa os meus limites, que retira minhas lentes de proteção, que coloca-me frente -a -frente com a dor ao mesmo tempo que destrói todas as minhas bases de pertecimento do mundo. Este outro eu, que também sou eu, é como um platô, uma zona de intensidade onde não se pode distinguir alegria e sofrimento, morte ou vida; tudo é fluxo, movimento. Ordem e desordem circulam juntas em minhas veias, irrigando e diluindo todos os vincos e amassaduras da pele. Cria-se em mim um corpo novo, pleno de acontecimentos, povoado por mundos distintos que não podem ser nomeados, são como ar ou as correntes elétricas. Sou atravessada por deslocamentos energéticos que percorrem os espaços internos da minha carcaça existencial, preenchendo-a rapidamente por fios invisíveis, compostos de vibrações capazes de sustentar a fluidez do corpo profundo. Meu corpo se refaz e se desfaz a cada instante, sua estrutura anatômica não se enquadra no perfil dos seres organizados. Carnes e ossos foram triturados! Sabe-se que um corpo morto é aquele que não se modifica. Sabe-se que o vazio é povoado por intensidades, por pedaços de imanências, que se alteraram contínua e ininterruptamente. Sabe-se que o corpo imortal é febril, contagioso, fragmentado, contraditório, convulsivo.
O contato com este outro corpo, o corpo de dentro – corpo profundo, faz com que eu tenha a impressão de estar sendo levada por uma enxurrada em direção a um mar de possibilidades infinitamente desconcertantes; nado até o limite das minhas forças, chego à superfície após um quase afogamento, tudo o que consigo produzir a partir deste instante é resultado deste encontro. As memórias que restam não me dizem quem sou, tudo o que sobrou, está revirado, retorcido, desconjuntado, desarticulado -como as bonecas de Bellmer. Abandono meu corpo antigo e passo a ser como um corpo epilético no auge da sua crise, um corpo masoquista no limite da sua dor, um corpo em (de)composição.
Sou um corpo vazio, um corpo imortal, um corpo sem órgãos!


O Texto acima foi escrito a partir da leitura das seguintes referências bibliográficas:

ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Max Limonad Ltda, 1984.
ARTAUD, Antonin. Heliogabalo ou o Anarquista Coroado. Lisboa:Assírio & Alvin,
1991.
ARTAUD, Antonin. Carta aos Poderes. 1989.
COURTINE, Jean –Jacques, CORBIN, Alain e VIGARELLO, Georges. História do Corpo vol.3 – As Mutações do Olhar. O século XX. Rio de Janeiro: 2008.
DELEUZE, Guilles e GUATTARRI, Felix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 3. São Paulo: Editora 34, 2007.
________ 28 de Novembro de 1947 – Como criar para si um corpo sem órgãos.
GREINER, Christine e AMORIM, Claudia. Leituras da Morte. São Paulo: Annablume,2007.
________ PELBART, Peter Pal. A Vida Desnudada.
NOVARINA,Valère. Carta aos Atores ou Para Luis de Funès. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999.
QUILICI, Cassiano Sydow. Antonin Artaud – teatro e ritual. São Paulo: Annablume, 2002 ________Apêndice: “O corpo sem Órgãos ou a Dança às Avessas”.
VIRMAUX, Alain. Artaud e o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1978.

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